Neste mês de maio, Águas Claras celebra seus 22 anos de criação oficial como Região Administrativa do Distrito Federal. Com quase 150 mil habitantes e um dos metros quadrados mais valorizados da capital, a cidade é hoje símbolo de verticalização, mobilidade e crescimento urbano acelerado. Mas nem sempre foi assim.
Para entender melhor os bastidores dessa transformação, conversamos com uma das figuras centrais da concepção e planejamento da região: o engenheiro José Roberto Arruda. Muito antes de se tornar governador do DF ou de ocupar o Senado, Arruda atuava nos bastidores do Palácio do Buriti como secretário de Obras do então governador Joaquim Roriz, no início dos anos 1990 — período decisivo para a formatação do projeto que daria origem a Águas Claras.
Nesta entrevista ao Folha de Águas Claras, ele relembra os desafios técnicos e políticos de erguer uma cidade do zero, fala da inspiração que veio do metrô de Brasília e da aposta na habitação vertical como modelo urbanístico para o futuro. Com sua visão de engenheiro e gestor público, Arruda compartilha curiosidades e bastidores que ajudaram a moldar uma das regiões mais dinâmicas do DF.

Como surgiu a ideia de criar Águas Claras?
Na verdade, Águas Claras surgiu com o metrô. Então eu preciso recuar um pouco no tempo para poder explicar como que surge a cidade. No governo José Aparecido, eu era secretário de Transportes. O Instituto Mauá de Tecnologia tinha sido contratado para fazer um estudo para o Departamento Estrada de Rodagem (DER DF) sobre demanda de transporte e havia chegado à conclusão de que, com o crescimento populacional de Brasília — principalmente na área de Taguatinga — era necessário um transporte eletrificado. Naquela época, falar em metrô em Brasília parecia piada, porque o DF não tinha trânsito e nem 1 milhão de habitantes. Mas eu acreditei naquilo.
Eu sou engenheiro eletricista, minha vida era na CEB, e o desafio na época era como fazer um transporte eletrificado em Brasília se só tínhamos corrente alternada. O transporte precisa de corrente contínua. Então comecei a estudar esse aspecto técnico. Viajei o mundo inteiro, assisti palestras, visitei o metrô de Paris, o metrô de Roma, enfim, fui atrás. Estudava como transformar a corrente alternada em corrente contínua para alimentar um sistema de transporte eletrificado, como havia sugerido o Instituto Mauá.
Ainda como secretário de Transportes, com o apoio do governador José Aparecido, decidi colocar no papel o projeto de um metrô de superfície. Esse primeiro projeto, feito com um pequeno grupo de engenheiros na CEB, saía de Ceilândia, passava por Taguatinga, vinha pela Estrutural, entrava na Rodoferroviária, cortava o Eixo Monumental e chegava à Esplanada dos Ministérios. Esse era o traçado inicial.
Mas, no governo José Aparecido, o Carlos Magalhães, que era secretário de Obras, ridicularizou a ideia. Chegou a dar entrevista ao Correio Braziliense dizendo que era um absurdo. Então o projeto não andou. Depois, já no governo Roriz, ele me procurou para que eu explicasse o projeto do metrô. Expliquei e ele acreditou. Roriz venceu a eleição, eu assumi a chefia da Casa Civil e criei a Coordenação do Metrô, que depois virou a empresa do metrô.
Com isso, trouxemos mais engenheiros da Eletronorte, da CEB, e colocamos o projeto para andar. Nessa época, convidei o professor Lúcio Costa para vir a Brasília — foi a última visita dele à cidade. O objetivo era obter a aprovação do traçado do metrô. Mas o professor Lúcio Costa não aprovou. Disse: “Arruda, você está errado. Você tem que fazer o metrô vir pelo eixo da Asa Sul e depois pela Asa Norte”.
Começamos então a repensar o traçado com base no que ele disse. Vimos um estudo de origem e destino e percebemos que ele tinha razão. Começamos a desenhar o novo traçado. Quando argumentei que a demanda estava toda do lado oeste, na W3, ele respondeu: “Você não faz o metrô para a demanda existente, faz para a demanda projetada, a demanda desejada”. E o eixo de Brasília foi projetado para isso. Ele tinha razão. A sabedoria do professor Lúcio Costa era impressionante.
Com isso, reformulamos o traçado: metrô saindo de Ceilândia, passando por Taguatinga, cortando a Colônia Agrícola Águas Claras, passando pelo Guará e entrando no Plano Piloto. E, por exigência dele, o trecho no Plano Piloto teria que ser subterrâneo — isso é um outro capítulo, mas cumprimos à risca.
Para passar entre Taguatinga e Guará, precisávamos desapropriar as chácaras da Colônia Agrícola Águas Claras. Eram 134 chácaras. Isso foi em 1991. Em uma reunião de trabalho, estavam presentes a arquiteta Viviane, o Gaspar, o Vicente Nogueira Filho — que foi reitor da UDF — e o Cláudio Santana, então presidente da Novacap. Eles me disseram: “Arruda, já que você vai desapropriar essas chácaras para passar o metrô entre Guará e Taguatinga, por que não cria um núcleo urbano ali? Vai ficar supervalorizado, cortado pelo metrô”.
O Cláudio Santana então me contou uma história muito interessante. Disse que a Light, no Rio de Janeiro, ganhou muito dinheiro comprando duas fazendas que ninguém queria, apenas charcos, e puxando energia elétrica, depois um bonde, e loteando. Uma dessas fazendas virou o Leblon. A outra, Ipanema. E aquilo me acendeu uma luz. Estávamos no fim da tarde, com a planta das chácaras sobre a mesa, suja de terra mesmo, e ali desenhamos o que poderia ser o núcleo urbano. No dia seguinte, às 6 da manhã, fui caminhar com o governador Roriz, como fazíamos diariamente na residência oficial em Águas Claras, e levei a planta.
Mostrei para ele e disse: “Governador, olha isso aqui”. Ele olhou e falou: “Caraca, genial”. Eu disse: “Então assina aqui, para o senhor não voltar atrás depois”. Ele assinou. Pena que perdi essa planta assinada. Depois disso, contratamos o professor Paulo Zimbres e o arquiteto Luiz Antônio Reis — que hoje é presidente da Caesb — para desenvolverem o projeto de Águas Claras. E, num prazo curtíssimo, o projeto foi feito.


Como foi o processo de desapropriação das chácaras e o início das obras?
Quando eu terminamos a licitação do metrô e começamos a obra, o planejamento de Águas Claras já estava pronto. A desapropriação foi outra novela. Os chacareiros não queriam sair. Se eles tivessem ido para a Justiça, talvez estivéssemos brigando até hoje, e não teríamos nem o metrô e nem Águas Claras.
Reunimos os chacareiros. O Benedito Domingos, ex-administrador de Taguatinga e ex-deputado distrital, ex-deputado federal e vice-governador do DF – me ajudou muito nessa etapa, porque ele era muito amigo dos chacareiros. Conseguimos chegar a um acordo: faríamos a desapropriação, pagaríamos pelas benfeitorias, e além disso, cada chacareiro ganharia um lote — que são aquelas casas que ficam na beira da Avenida Parque Águas Claras, logo acima da residência oficial.
Firmamos o acordo, celebramos com todos, não houve ações judiciais, e pudemos seguir com as obras. Desapropriamos as chácaras, iniciamos a linha do metrô e já começamos a abrir as primeiras ruas de Águas Claras.


Como foi feita a distribuição dos lotes em Águas Claras e qual a participação das cooperativas?
Na verdade, o que aconteceu foi o seguinte: pegamos toda a área de Águas Claras, fizemos o projeto da cidade, aprovamos no Conselho de Arquitetura e Urbanismo e os lotes foram disponibilizados pela Terracap para comercialização. Aí houve um grande movimento por parte das cooperativas, que pediam o direito de participar do processo.
Diante disso, decidimos dividir: metade dos lotes foi destinada a licitação para empresas do setor imobiliário e a outra metade foi reservada para as cooperativas habitacionais. Algumas dessas cooperativas deram certo, outras não. Hoje, olhando em retrospecto, eu faria diferente. Acreditei demais nesse modelo de cooperativismo, mas reconheço que o resultado não foi como esperado. Até hoje ainda existem carcaças de prédios inacabados. Foi um erro que eu cometi, sem dúvida.
Mas tem um aspecto muito interessante nisso tudo. O metrô estava orçado, à época, em cerca de 1 bilhão de reais — considerando o câmbio da época, em que o dólar valia um real. Se atualizarmos, isso, equivaleria hoje a uns 5 bilhões de reais. Pois bem, quando realizamos a primeira venda das projeções urbanas de Águas Claras, arrecadamos metade desse valor. Ou seja, Águas Claras praticamente pagou a construção do metrô, a infraestrutura urbana e ainda sobrou dinheiro. Foi um encaixe perfeito.
Costumo dizer que essa história é o clássico dilema do ovo e da galinha: quem nasceu primeiro? No caso, o metrô nasceu primeiro. Mas Águas Claras e o metrô nasceram juntos, em simbiose. E havia ainda uma razão técnica importante: um dos grandes problemas do transporte coletivo em Brasília é a falta de renovação de passageiros no trajeto. Um ônibus sai da Ceilândia com 100 passageiros e chega ao Plano Piloto com os mesmos 100. Pouca gente embarca ou desembarca no caminho. Isso encarece o sistema.
Com Águas Claras, criamos um ponto de renovação. As primeiras estações — hoje são quatro — permitiram que novas pessoas embarcassem e desembarcassem ao longo do trajeto. E assim, Águas Claras se tornou a cidade mais bem servida de transporte coletivo do DF. É a única cidade em que a classe média e até a classe média alta utilizam o metrô como meio principal de locomoção. Isso é um avanço civilizatório importantíssimo.
Tenho muito orgulho disso. Como engenheiro da CEB, comecei o projeto do metrô. Como secretário de Transportes do governo José Aparecido, elaborei o primeiro traçado. Depois, como secretário de Obras do governo Roriz, executei o primeiro trecho entre a Praça do Relógio e a estação Samambaia. E como governador, levei o metrô até Ceilândia, construí oito novas estações e adquiri 48 novos trens.

Voltando a Águas Claras: o trânsito é um problema recorrente. E mesmo sendo bem servida de transporte, com metrô, zebrinha, ciclofaixas e ciclovias, o trânsito interno é complicado. O que faltou?
O erro foi na mudança do gabarito. O projeto original do Paulo Zimbres previa prédios com altura máxima de 12 pavimentos. As ruas foram dimensionadas para essa densidade. Depois que saímos do governo, houve alteração na legislação que liberou prédios mais altos — alguns com até 30 andares — mas não se mexeu na infraestrutura viária. Resultado: as ruas continuaram as mesmas.
A solução definitiva seria a Interbairros (rebatizada de Avenida das Cidades), um projeto que deixei pronto. É uma proposta do arquiteto Jaime Lerner, que revoluciou o transporte de Curitiba quando foi prefeito lá. A ideia é utilizar a faixa da linha de transmissão da Furnas — que separa Águas Claras de Arniqueira — e enterrá-la, criando uma nova via expressa. Seriam sete pistas de cada lado, ligando Samambaia, Taguatinga Sul, Universidade Católica, Águas Claras, Arniqueira, Guará e o Plano Piloto.
Essa Interbairros se pagaria com a valorização dos terrenos lindeiros, que poderiam ser comercializados. É uma questão de vontade política. Isso resolveria não apenas o acesso e a saída de Águas Claras, mas aliviaria também o trânsito interno.

E a mobilidade interna? Há alguma solução?
Acredito que grande parte do problema será resolvida com a Interbairros. O principal motivo dos engarrafamentos em Águas Claras são as poucas vias de saída. Quando tivermos múltiplos acessos pela Interbairros, o trânsito interno vai fluir melhor.

Qual a sua percepção sobre a cidade hoje?
Sou suspeito para falar. Águas Claras é parte da minha vida. Quando chegar o fim da minha jornada, vou poder dizer: tive seis filhos, fiz o Caminho de Santiago de Compostela, projetei o metrô, ajudei a criar Águas Claras. É algo que me emociona.
A cidade ficou linda. Tem gente andando a pé, descendo do prédio para ir à padaria, ao restaurante, ao mercado. Tem quem use o metrô e vá ao Plano Piloto sem precisar tirar o carro da garagem. Isso é qualidade de vida.
Se Vicente Pires tivesse seguido o exemplo de Águas Claras, não seria a bagunça que é hoje. Águas Claras tem erros, claro, mas é uma cidade planejada. Vicente Pires não teve planejamento, foi loteada por grileiros. O governo gasta muito mais lá, e nunca vai alcançar o mesmo nível de organização.
Temos também o Parque Central e o Parque Sul, que nasceram de um concurso de arquitetura. São projetos lindos. O governo precisa implementá-los de forma plena. Isso ajudaria muito na mobilidade a pé e de bicicleta.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui