Aquele ano de 1969 seria o mais tropicalista entre todos do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Pelo menos no que diz respeito aos participantes da mostra competitiva de longas-metragens, uma mescla da nata do Cinema Marginal e do Cinema Novo. Para se ter uma ideia, Grande Otelo era uma das principais atrações do encontro, junto com as divas Leila Diniz e Helena Ignez. Então vencedor da edição passada, com o revolucionário “O Bandido da Luz Vermelha”, Rogério Sganzerla voltava à mostra com releitura moderna da chanchada brasileira em “A Mulher de Todos”.
“Possivelmente estávamos nos beijando quando saiu o resultado”, provoca hoje a octogenária Helena Ignez, que vivia nas telas a sensual e feminista Ângela Carne e Osso. “Era a primeira personagem feminista do cinema e lembro, no festival, do Rogério ser atacado pela crítica, com insinuações grosseiras de como ele estava me explorando como sexy, num sentido, insinuavam eles, que poderia ser até mesmo pornô”, conta a atriz.
Sem ficar atrás, Joaquim Pedro de Andrade trazia uma interpretação colorida e histriônica do Brasil, no vibrante “Macunaíma”, baseado em livro de Mário de Andrade, enquanto o cineasta Julio Bressane chocava a plateia com o violento “O Anjo Nasceu”. O vencedor daquele ano histórico seria David Neves, com o poético “Memória de Helena”, mas quem roubaria a cena, literalmente, seria o jovem diretor baiano André Luiz Oliveira, então com 21 anos (foto), apresentando o anárquico “Meteorango Kid – Um Herói Intergalático”.
“Em Brasília o filme aconteceu. Quem venceu oficialmente o festival foi o Davi Neves, com ‘Memória de Helena’, mas ‘Meteorango’, que ganhou prêmios especiais, saiu vencedor pelo impacto que causou”, lembra André, 50 anos depois. “Lembro-me das muitas manifestações mais que calorosas ao filme, além da beleza contagiante de Leila Diniz e o semblante decepcionado de Joaquim Pedro que não levou o merecido prêmio de Melhor Filme”, conta.
Com a sanha da repressão bafejando, sobretudo no pescoço da classe artística, amparada pelo ignaro decreto do Ato Institucional n.º 5, publicado em dezembro de 1968, endurecendo ainda mais o regime contra a liberdade de expressão, “Meteorango Kid”, claro, teve problemas com a censura. Moderno e ousado, o filme era uma afronta à hipocrisia da sociedade conservadora e ao clima político da época.
Por meio do personagem Lula, trazia uma exaltação de rebeldia e revolta contra aqueles dias de opressão. A trama, debochada, caiu nas graças do público jovem, mas não dos censores, que tentaram, até o último minuto, impedir a exibição da película, sem sucesso. Graças à intervenção e sabedoria de figuras como a do professor Paulo Emílio Salles Gomes e do crítico baiano Walter da Silveira, entre outros.
“Havia rumores de que censores estavam no cinema decidindo se o filme passaria ou não. Decidiram deixar exibir com a presença deles na cabine de projeção, para controlar a altura dos diálogos indesejáveis, absolutamente bizarro e ridículo”, recorda André Luiz Oliveira. “Irritei com isso, levantei e estava saindo da sala, quando o professor Walter da Silveira me pegou no corredor, mostrando que a resistência era ficar, já que a plateia estava se divertindo e vaiando os censores. O filme foi exibido até o fim e ovacionado”,se diverte, hoje, o cineasta.
Tensões cerradas
Naquele ano de 1969, o clima fechou não apenas no palco da maior festa do cinema brasileiro, mas também nos bastidores do Festival. No Hotel Nacional, point dos participantes e convidados do evento, a galera que tostava sob o abrasador calor do cerrado, à beira da mítica piscina do local, tomou um susto com as cenas de agressões do cineasta Rogério Sganzerla contra o crítico de cinema Rubens Ewald Filho. Indignado com uma análise pessimista do jornalista sobre o filme “A Mulher de Todos”, um dos concorrentes da mostra, o diretor não titubeou em enchê-lo de sopapos.
“Ele havia dito pelos corredores do hotel que isso iria acontecer se cruzasse com o Ewald e cumpriu sua promessa”, lembra o veterano Wladimir Carvalho, que presenciou a cena, já que fazia a estreia no Festival de Brasília, naquele ano, com seu segundo curta-metragem, “A Bolandeira”. “Minha história com Brasília começa com esse festival de 1969 e a coisa mais candente foi a exibição do ‘Macunaíma’ do Joaquim Pedro de Andrade, em plena ditadura, na vigência do AI-5, um filme extraordinário, de caráter político. Era uma novidade, fiquei encantado”, diz.